Com os olhos com os quais fui brindado, vi
nascer o dia, como havia visto nasceram muitos outros, este, o de hoje particularmente
cinzento, triste e sem cor.
O vento combate diabolicamente os obstáculos,
fustigando portas e janelas, debatendo-se corajosamente, invadindo os lares
através das frinchas que lhes cedem, apoquentando o descanso das gentes.
As nuvens surgem carregadas pela negridão,
prontas a desabar uma bátega tempestuosa, sobre as nossas cabeças, lembrando-nos
que a natureza também se enfurece, revoltando-se contra os maus-tratos de que é
sujeita. Rebentam repentinamente, largando os seus raios selváticos sobre a
terra, iluminando o olhar de quem os mira, intensificando-lhe o brilho.
O olhar, presenteado pela luz dos relâmpagos,
denuncia um translúcido e límpido espelho que nos transporta para a verdade
escondida nos recônditos cantos da nossa alma, onde os mistérios se confundem
com os sonhos irrealizados.
A visão, um bem precioso com o qual fomos coroados
e que nos permite saborear as perfeições e imperfeições mundanas, a natureza e
a nossa própria beleza e seus defeitos (goste-se ou não).
Através do olhar absorvemos as cores, os
movimentos subtis das curvaturas suaves da nossa amada, bebemos o seu olhar que
nos trespassa e arrepia, provocando-nos desejos carnais, inenarráveis, mas
deliciosos.
É sobre o olhar e sobre a visão que me
debruço, esse bem sensorial, que todos usamos mas nem todos o temos e utilizamos
em toda a sua plenitude, olhando e vendo verdadeiramente.
Quantos não passam diariamente pelo mesmo
local mirando o pedinte estropiado que sentado à porta do supermercado, jaz ali
esfarrapado, lançando o chapéu roçado à frente de seus pés pedindo uma moeda
para comer. Quem se preocupa em olhar nos olhos desse pedinte e lhe procura
estudar a alma, o que sente esse homem, será um pedinte ou um engodo para espoliar
umas moedas às almas mais sensíveis e caridosas? Estudam as suas mãos para
verificar se estão maceradas de sujidade, ou demasiadamente bem tratadas para
saber-se estar perante um pedinte ou um chico-esperto?
De que servem os olhos aqueles que caminham
olhando mas nada enxergam, passando-lhes os pormenores ao lado, pois olham, mas
não examinam, não pesquisam, não sentem com o olhar daquilo que deveriam ver e
não veem.
Em bom rigor todos somos cegos, olhamos cada
vez mais para o eu, para o quero, para o bem-estar pessoal. Vivemos uma espécie
de cegueira onde existe apenas o eu sobrevivente que se fecha às emoções que o
rodeiam, cerrando os olhos para não sermos atingidos pelo mal alheio, que tanto
receio provoca na sociedade atual. Apregoamos e pronunciamos aforismos;
palavras; poesias lançando belas palavras que o recetor quer ouvir, mas não aquelas
que deveria ouvir. Todos querem olhar os lábios de quem amam, ou assim o pensam
e ouvir a pronúncia de belos momentos que se avizinham, mas que não traduzem em
atos. No fundo através da sua cegueira mental, lançam as trevas na sua alma,
cegando o próprio amor que daí deveria alcançar o ser amado!
Ainda que a cegueira branca provoque o caos,
ainda não entendo como seres pensantes que somos, nos deixamos contagiar.
Qual a causa para a súbita cegueira narrada
por José Saramago e que procuro deslindar no meu entendimento? Entendo hoje que
tal cegueira se deveu com alguma certeza, ao esvaziamento da pureza de
pensamentos, dos sentimentos corrompidos, ao excesso de oferta e banalidade em
que se tornaram os sentimentos, bem como pela facilidade com que se mata o apregoado
amor – ou o que se julga ser esse sentimento que foi tão nobre.
Todos deambulamos por cidades, vilas e aldeias
imaginárias, cheia de tudo, mas onde reina o nada, desprovidas do mais básico
sentimento humano. Os pormenores, as cores, a identidade e a vida foram
enfraquecendo, apagando-se como se da chama de uma vela se trata-se. Tudo
porque vivemos olhando, mas nada vemos.
Hoje já não nos basta, para enchermos o peito
de felicidade, o deleite com o mero sorriso de uma criança, o cumprimento de um
vizinho, o abraço de um amigo, o beijo de uma mulher, isso não chega para
derrubar as barreiras de uma indiferença mental e sentimental que nos está a
cegar aos poucos sem nos darmos conta de tal.
Temo a queda do amor, cego por olhos que nada
veem e morto por corações que não sentem!
Temo a perdição da alma, cuja cegueira apagou
seus traços de humanismo, lançando-a nas trevas mais profundas dos sentimentos
perdidos.
Temo esta cegueira que persegue os
sentimentos, estamos a ficar cegos para o amor, aquele que serve como combustível
para a vida; aquele amor que faz a engrenagem do nosso corpo funcionar, que
alenta os carentes e apazigua os apaixonados.
Temo a visão de um mundo que vê hoje sem nada
ver!
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