sábado, 28 de dezembro de 2013

A morte também amou


A morte decidiu fazer greve, pois era incompreendida pelos seres humanos.
Da greve nasceu o caos, do caos a perdição, a desumanização a tresloucada busca pela morte além-fronteiras.
Logo se deu conta a morte (a morte singular e não a universal) que a sua missão urgia seguir.
Enviados os subscritos violetas, todos foram entregues aos malogrados padecentes.
Mas alguém teimava em não o receber, logo se pensou, não queria morrer?
A morte encarregou-se pessoalmente do violoncelista, mas caiu nas malhas do amor e a partir daquele dia mais ninguém morreu.
O caos regressou? A perdição, a tresloucada busca pela morte como pacificação da alma? O descanso eterno? A morte não se poderia render ao amor … mas fê-lo!
Até a própria morte no seu salão frio, abandonou a foice, ultrapassou o umbral da porta e revestiu o esqueleto de uma carcaça de fêmea humana para seduzir, mas acabou seduzida, perdendo o tino e a razão.
Desde esse dia no país imaginário a morte deixou de cumprir a sua missão pois a sua razão foi embriagada pelo coração!
Não se consta (nem conheço) que haja capítulos subsequentes escritos por Saramago, onde se refira que Deus exorte a morte (com letra minúscula) à razão, o que seria incompreensível, apesar da autonomia da morte sem ela não existiria ressurreição, logo não haveria religião!
A morte é uma marca que nasce já em vida, logo não pode imiscuir-se a sua missão por mais tenebrosa e aterradora que seja, assim não deveria ter-se apaixonado pelo personagem, mas ainda assim contra a sua natureza fê-lo e amou-o de corpo e alma, desconhecendo-se qual o rumo da morte e do amor que partilhou. Todos podem amar, mas não a morte que de tão fria e aterradora mata só com o seu olhar fulminante!
Se a morte amou, porque não amam aqueles seres humanos, frios, calculistas, desprovidos de sentimentos? Serão eles a encarnação em vida da morte, não do corpo mas do sentimento? Sim porque essa morte deve ser também ela preocupante ou talvez mais, já que a morte corporal é já de si uma certeza aquando da gestação.
Acredito veementemente que esses mortos-vivos para o sentimento mais belo que é o amor, também podem ressuscitá-lo da profundidade obscura da alma, onde o encerram, guardado por correntes de aço, praticamente inacessíveis.
A morte mata o amor de muitos padecentes, mas mais tenebroso é a morte do amor produzida por muitos humanos morto-vivos, que percorrem os caminhos da sua inócua vida quais fantasmas, sem sentirem o calor do amor que rejeitaram!

João Salvador – 28/12/2013

In: Visão comentada da obra as Intermitência da Morte de José Saramago